"Ando devagar porque já tive pressa..."

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"Ando devagar porque já tive pressa..."

21/07/2008

Chama Acesa

Quando eu nasci, meu pai já tinha completado cinqüenta anos.Isto foi uma das coisas que marcaram muito a minha vida, pois a partir do meu olhar de criança, já tinha pai velho.Era um misto de pai e avô, se comparado aos das minhas amigas.
Marcou sim; não nego até que, de certa forma, sentia um pouco de vergonha, mas nada que pudesse atrapalhar nosso relacionamento pai-filha.Papai sempre foi um pai muito bom e disso eu muito me orgulhava.Um pai presente, a despeito dos dias que passava fora de casa, no cariri.Interessante isso!Há pais que convivem diariamente com os filhos e não chegam a construir uma relação nem um pouco parecida com a nossa, quanto à intimidade.
E foi assim com todos nós.Costumo dizer que nós treze fomos criados como filhos únicos.Estranho isso, não é mesmo?Mas foi assim que se deu nosso convívio familiar, cheio de afeto e carinho, embora também repleto de brigas de irmãos.Mas quem não as vivencia?A não ser que realmente seja filho único.
Algo que fez parte da minha vida também, isso já na fase adulta, foi a iminência da sua perda, visto que a idade avançada nos dava a todos uma certa insegurança quanto ao tão
propalado “dia de amanhã”.Foi assim que eu driblei as adversidades comuns a alguém que casa jovem e que logo no segundo ano de casamento já tem duas filhas e consegui fazer a faculdade em tempo hábil, com o principal interesse de tê-lo como padrinho e entrar de braços dados com ele na cerimônia de colação de grau.E foi assim que aconteceu.Lembro que Rostand ficou um pouco enciumado, por eu não o ter convidado pra ocupar este posto, já que estávamos casados já há nove anos.
De lá para cá, muitas coisas aconteceram; entre elas a formatura de Fáti, de Moema, a primeira neta e de Maíra a segunda; e em todas elas papai esteve presente.Na de Fáti, inclusive como padrinho também.Quanto às netas, as fotografias registraram o momento da valsa, onde ele, solenemente e com a alegria de costume, dança a valsa com elas.
Lá em casa tem, inclusive, um local onde são expostas as fotografias das nossas formaturas, posto que esse sempre foi um momento muito esperado por papai, que não mediu esforços para que todos nós tivéssemos estudo de primeira qualidade, nos melhores colégios da cidade.E é com muita alegria que recordamos as Lourdinas, o Colégio das Damas, o CPUC...Em nossas lembranças constam como ponto alto as festas juninas escolares, tão apreciadas por nós e que sempre ele, tanto quanto mamãe, fez questão da nossa participação.Não dá pra esquecer as roupas matutas que mamãe varava as noites em claro para dar conta.Cada uma mais linda que a outra e que nos deixavam orgulhosos no dia da festa que curtíamos até não poder mais.Eita, que tempo bom!
Este é o primeiro ano que passamos sem sua presença nas festas juninas, o que nos faz sentir uma imensa saudade, acompanhada de uma vontade enorme de manter a tradição, por isso mesmo haja fogueira, haja fogos, haja comidas típicas e haja esforço de nos alegramos, apesar dos pesares.
Há alguns anos o ritual de acender a fogueira ficou a cargo de Flávio, o filho mais novo, já que ele não mais tinha condições de fazê-lo.
Graça lembrou que há três anos ele dava uma espiada na fogueira, lá de cima do terraço e na sua falta de lucidez temia um incêndio, bem como se apavorava com o estouro dos fogos.Ah, mas isso ele sempre fez; não gostava que soltássemos fogos, para que não machucássemos.Lembro que quando criança, os foguinhos que nos deixava soltar eram os inocentes traques e as estrelinhas.
Cheiro de fogueira acendendo, com direito a querosene e tudo o mais, e já acesa, é reminiscência certa de uma infância feliz, a esperar a hora de papai montar a fogueira e principalmente do chamado; - “venham todos, vai chamar tua mãe, vamos acender a fogueira...”
Ai que saudades do meu velho pai, cujas lembranças jamais envelhecerão na minha mente.E por isso mesmo sempre serei feliz e pedirei a Deus para que todos os filhos tenham o direito a um pai descente como o meu.Talvez assim a violência no mundo diminuísse, talvez, quem sabe, as pessoas fossem mais felizes.Quem sabe... Pois como está escrito na camiseta comemorativa dos seus noventa anos, parafraseando Tom Jobim: “Se todos fossem iguais a você, que maravilha viver” – José Felinto de Araújo – 90 anos de amor.
Amanhã mais uma vez as fogueiras serão acesas, a festa vai continuar, pois será véspera de São Pedro.Irão varar a madrugada e ao amanhecer estarão apagadas, transformadas em cinza.Porém, nosso dever e nossa vontade são não deixar que a chama acesa dentro dos nossos corações se apague, pois assim poderemos reviver sempre as festas juninas passadas e encher de lembranças boas as que ainda estão por vir.

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